Obama surpreendido pela Religião no Iraque & Variantes do Maquiavelismo atual
No Iraque, os chiitas, representados a verde escuro, são maioritários no sudeste e os sunnitas, representados a verde clro, a norte e a oeste. Na Síria, os chiitas concentram-se no litoral e os sunnitas no interior (o mapa mostra ainda lugares santos do Islão).
A semana passada, uma organização terrorista islâmica, o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (também conhecido por Estado Islâmico do Iraque e da Síria – ISIS em inglês), conquistou Moçul e começou o que pareceu um avanço imparável para Bagdade.
O mundo inteiro viu na televisão que o Presidente Obama fora apanhado de surpresa: ficou sem reação e anunciou que ia mandar estudar respostas possíveis (anda está a estudar. A surpresa é fácil de explicar : o presidente dos Estados Unidos e o seu staff ignoram a força contemporânea da religião como causa ou pretexto dos conflitos pois vivem na galáxia que Woody Allen sintetizou nos anos 1960: «Marx morreu, Deus morreu e eu também não estou a sentir-me bem». Samuel P. Huntington, numa obra muito discutida, colocou há anos a religião no cerne do «conflito entre as civilizações»; teria igual direito a colocá-la no coração de muitas guerras civis. Em política internacional, a «morte da religião» morreu – pelo menos por hora.
O que se passa no Iraque é a a guerra entre duas principais variantes do Islão, o sunnismo e o chiismo. Ao derrubarem Sadam Hussein, em 2003, os Estados Unidos e Grã-Bretanha, dirigida pelo Sr. Tony Blair, substituíram-no por um governo exclusivamente chiita. O Isis é uma organização terrorista sunnita, apoiada por muitos iraquianos, fartos do sectarismo do governo de Bagdad.
Um dos resultados deste conflito é a fuga dos cristãos: é o que está a passar-se em Moçul e nas cidades vizinhas. Ainda a semana passada, o Papa Francisco manifestou preocupação com a perseguição religiosa aos cristãos, numa entrevista a Henrique Cymerman.
É neste contexto que o Sr. Blair, o antigo primeiro ministro britânico, apareceu ontem a afirmar: «não fomos nós que causámos esta crise no Iraque». Bastava que, finda a invasão, os aliados tivessem reconvertido o exérico de Saddam, que era de base sunnita, chiita e laica, não dand todo o poder aos chiitas em Bagdad, para que não tivesse ocorrido a onda de violência sectária, que domina a vida do Iraque desde a invasão. Aquele lavar de mãos tem a sua explicação: Blair foi o principal instigador europeu da invasão do Iraque de Sadam: foi ele o inventor da bomba nuclear de Saddam, para assustar os seus eleitores e precipitar a invasão do Iraque. Hoje o Sr. Blair tem uma fundação para o estudo da religião e não lhe convém aparecer como o destruidor do cristianismo no Médio Oriente – nem como o destruidor dos direitos humanos no Médio Oriente.
Aprofundemos um pouco. O ISIS cresceu graça ao apoio ocidental aos rebeldes da Síria – rebeldes sunnitas que combatem um regime chiita. O padrão politico-religioso é igual ao do Iraque, o bailado ocidental é que varia. Dito de outro modo: o ISIS é nosso aliado na guerra civil na Síria. O Sr. Blair ignorará estes dados básicos? Tem que ignorar, para não ter que confessar o delírio e a imoralidade da política internacional de que é um dos inspiradores. O Sr. Blair personifica a grande variante atual do maquiavelismo político-religioso.
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Entrevista do Papa Francisco a Henrique Cymerman
Regra geral,os países islâmicos sofreram um retrocesso civilizacional porque “uma imensa cortina teocrática” se abateu sobre eles. Tem a vantagem de mostrar que o movimento nem sempre é de progresso, a par da importância da separação dos poderes. Fica claro que as questões religiosas deveriam constar mais das agendas de política internacional.
Estado e Igreja agradece o comentário e permite-se anotar que, sem entrar na análise epistemológica da noção de retrocesso civilizacional, nem todos os Estados onde a religião muçullmana é maioritária se afastaram da democracia representativa e do Estado de Direito: a Turquia e a Indonésia não se afastaram.